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Cultura dos Vinhos de Talha

Para se entender e gostar verdadeiramente de vinho de talha é preciso conhecê-lo desde as vinhas e castas antigas com que é feito, até ao seu originalíssimo processo de vinificação em talhas de barro e ao ritual do seu consumo na região. Só assim é possível reconhecer, até ao mais pequeno pormenor, a matriz mediterrânea que o sustenta. Quando tal acontece passa-se a gostar ainda mais dele e tem-se vontade de ir ao Alentejo profundo para o apreciar e conviver. Os locais eleitos pelos alentejanos para beber o vinho de talha são dois, a taberna, cada vez mais descaracterizada e em perigo de extinção, e a adega particular, onde se juntam os amigos.

Como se criam 
Vinhos de Talha?
Qual o segredo de um bom 
Vinho de Talha?
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Taberna do Alentejo

A taberna é um local especial, pois, ao contrário das outras tabernas, as do Alentejo também são adegas onde se faz o vinho, com as talhas alinhadas atrás do balcão prontas a receber as uvas em Setembro. Nesse mês a azáfama é grande. O anfitrião afadiga-se na preparação das talhas ou potes, na escolha do lote das uvas, no “ripanço” dos cachos para remover os engaços e “moer” os bagos, em mexer a balsa quando o mosto começa a “ferver”, muitas vezes com a ajuda dos clientes. É tempo de alegria e exaltação em que todos capricham em fazer o melhor vinho das redondezas, pois os clientes, com olfato e palato treinados, sabem reconhecer a qualidade e elegem, com a autoridade que se lhes reconhece, o melhor vinho de cada colheita. Escusado será dizer que o feliz contemplado fica com o orgulho estampado no rosto, pois produzir o melhor vinho de talha dá direito a grande reconhecimento social e agiliza o negócio. Importará reconhecer, no entanto, que é uma competição saudável, sem stress, em que todos participam alegremente.

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Perfil
Vinhos de Moreto de
Talha

O perfil identitário dos vinhos de talha de Moreto na sub-região Granja-Amareleja, suportadas pela tradição, baseia-se numa vinificação minimalista, que sempre foi a usada pelo pequeno vinhateiro da Amareleja, e no recurso a uvas que não estejam sobremaduras, como sempre foi hábito até ao final do século XX.

 

Tendo em conta os pressupostos referidos e admitindo um bom ano de colheita sem ocorrência de uvas podres, o perfil dos vinhos de talha da casta Moreto terá as seguintes características:

Cor rubi pouco intensa, aroma notório, agradável e identitário, bom equilíbrio entre o álcool e a acidez, pouca adstringência, apto a beber pouco tempo depois da vinificação e com alguma rusticidade, própria da vinificação em talha. No caso de se pretender fazer o seu engarrafamento, o vinho nunca deverá estagiar em barricas de carvalho novas ou usadas, para que não altere o perfil incutido pela talha de barro.

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Pendura
a casta branca que acompanha o Moreto há séculos

O nome oficial da casta é Diagalves, mas na Margem Esquerda do Guadiana toda a gente lhe chama Pendura, pois dá excelentes uvas de mesa que se conservam meses penduradas nas adegas dos produtores. Também é conhecida por Formosa, dado o tamanho e beleza dos cachos, e Carnal, por ser carnuda e suculenta. É uma casta muito antiga resultante do cruzamento de uma das castas fundadoras da ampelografia ibérica - Heben (em Espanha) ou Mourisco Branco (em Portugal) - com a conhecida casta de uva de mesa Dedo de Dama, cuja forma dos bagos a torna inconfundível.

A casta tem uma história curiosa na região da Amareleja, pois existiu pouco mais do que anónima durante séculos nas vinhas tradicionais e foi objeto de um ambicioso projeto de produção de uva de mesa, nas décadas de 1960/1970, onde teve grande protagonismo. Infelizmente, o projeto foi um insucesso comercial e os produtores tiveram que usar as suas uvas para fazer vinho (de talha). Afeiçoaram-se tanto à casta, pela sua adaptação ao calor inclemente da região e à sua generosa produção, que se tornou uma verdadeira estrela ampelográfica.

A exemplo do Moreto é uma casta muito tardia e bastante rústica, sendo bastante resistente ao oídio e míldio. Não dá, por isso, uvas com muito grau, embora tenham uma acidez aceitável, que permite que o vinho esteja pronto a beber no dia da abertura das talhas, a onze de Novembro. Há meio século dava origem, juntamente com o Roupeiro, Manteúdo e Rabo de Ovelha, a quase todo vinho de talha da Amareleja, pois o mais apreciado era o branco, desde o tempo dos romanos.

 

Desde que os tintos começaram a merecer a atenção dos homens da planície, recebeu a companhia do Moreto, que ganhou, entretanto, um protagonismo invulgar. A Pendura e o Moreto são hoje um património da vitivinicultura tradicional da Margem Esquerda do Guadiana.

Tradição de Consumo

Vinho de Talha

Como é tradição em todo o Alentejo e, naturalmente, na Margem Esquerda do Guadiana, a época do vinho de talha começa no dia de São Martinho, pois o processo de vinificação permite que o vinho esteja pronto a beber muito mais cedo do que o “outro”, feito pelo processo clássico. Toda a gente no Alentejo anseia pelo dia 11 de Novembro em que se vão abrir as talhas e provar a novidade. Em todas as adegas se começa, logo pela manhã, a afinar o vinho para o consumo. E tem que se lhe diga.

Depois de colocar um alguidar, preferencialmente de barro vidrado, por baixo do orifício da talha que se vai abrir, procede-se à colocação do engenho por onde vai sair o vinho. O sistema mais vulgar recorre ao uso de um furador metálico para atravessar a rolha que tapa o buraco da talha. Logo que tal acontece e o vinho começa a pingar, introduz-se uma torneira de madeira, que vai comandar o volume de saída do vinho. Porém, na Margem Esquerda do Guadiana ainda é tradição usar um processo muito mais exótico e original, mas não menos eficiente. Depois de furada a rolha, em vez da torneira de madeira, introduz-se um troço de cana cheio de caules de junça seca por onde se vai fazer passar o vinho, para clarificar. A junça, uma planta aquática que abunda nas margens do rio Ardila, não é escolhida ao acaso, pois só ela é eficaz para o fim em vista, dado ter um caule esponjoso de secção triangular. Quando o vinho começa a contactar com a junça desidratada, os caules incham e, graças à sua secção triangular, ajustam-se de tal maneira bem uns aos outros que não passa vinho entre eles, mas apenas pelo seu interior, o que já não aconteceria se a sua secção fosse circular. Por vezes, os caules incham tanto que o vinho deixa de correr através do seu interior, sendo necessário aliviar a pressão, retirando um ou mais caules para que o vinho torne a correr para o alguidar. Quando se usa a torneira ajusta-se a sua abertura para que o vinho caia igualmente em fio para o alguidar. De início, o vinho sai turvo, mas aos poucos começa a clarificar. Com a torneira clarifica mais lentamente do que através da cana com junça, pois o sistema de filtragem é, apenas, a sua própria “mãe”, isto é, as películas e as borras que se depositam no fundo da talha e através das quais o vinho passa. Ao fim de algumas horas o vinho começa a ficar limpo e o aroma e sabor, graças ao arejamento intenso, melhoram de forma surpreendente. Como é fácil de imaginar, no dia de São Martinho ouve-se o vinho a pingar para o alguidar em todas as adegas, numa sinfonia que indica que a época do vinho de talha começou e que aguça o apetite dos presentes e os põe a salivar, pois sabem que em breve começará a festa. Entretanto, todo o vinho turvo que cai no alguidar volta à talha, pois quando o sistema já está afinado será facilmente clarificado.

De volta à Taberna

Depois da prova do dia de São Martinho, que é sempre um acontecimento, a época prolonga-se até o vinho acabar, o que costuma acontecer em fevereiro ou março. Durante esses meses a adega é o local de reunião, de convívio e de animação, pois o consumo do vinho de talha, à boa maneira mediterrânea, exige o petisco, a música ou o canto, a conversa e os jogos populares.

Na Amareleja, na Granja ou na Póvoa de São Miguel ainda resistem algumas tabernas onde é possível testemunhar a riqueza antropológica do consumo de vinho e da convivialidade entre os comensais. Por isso, é uma experiência marcante para qualquer turista provar aí os vinhos da terra, vendo-o sair diretamente da talha. O sábado, dia de descanso na faina do campo, é o dia ideal para viver a experiência, pois a taberna enche-se dos clientes habituais antes do almoço.

Quando se vence a soleira da porta sentimos os olhos de todos os convivas, a bebericar o seu branquinho encostados ao balcão, em cima de nós, fazendo-nos sentir que somos de fora, mas quando dizemos ao que vamos põem-nos logo à vontade. A taberna ainda é, por norma, um lugar de homens, a exemplo do que acontecia na Grécia Antiga, mas se entrar uma turista será tão bem recebida como se fosse homem.

Quando pedimos um copinho de branco de talha, com a sua inconfundível cor dourada, ou um Moreto tinto de cor aberta, colocam-nos um copinho de vidro grosso à frente e enchem-no com um jarrinho de vidro, que foi cheio diretamente da talha. Quando perguntamos se há algum petisco para fazer boca o camarada do lado costuma dizer: aqui, somos nós que trazemos de casa! Se quiser pode servir-se de uma fatia de pero ou de marmelo, que vai muito bem com o vinho. E vai mesmo, pois os gregos já o tinham descoberto vinte cinco séculos antes! Contudo, o anfitrião coloca em cima do balcão um pires com bocadinhos de queijo curado, de ovelha ou cabra, ou tiras de manta de porco da salgadeira, rodelas fininhas linguiça, azeitonas britadas e o inevitável pão estaladiço cozido em forno de lenha.

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Adega Piteira

Se tivermos a sorte de viver esta experiência na “Adêga” do Zé Piteira, na Amareleja, onde a abertura de uma talha é um verdadeiro espetáculo teatral, a experiência gastronómica arrisca-se a ser inesquecível, pois pode-se ter a sorte de haver um caldo de bacalhau com ovos escalfados e queijo de cabra, uma sopa de cardos com gravanços, uma açorda de alho, migas com carne de porco, passarinhos fritos ou, simplesmente, um gaspacho com jaquinzinhos fritos. E tudo isto, na excelência da simplicidade e a arte da Paulinha, mulher do Zé Piteira, uma cozinheira de mão cheia. Nesta adega/ restaurante tem-se o privilégio de poder acompanhar as iguarias com o Moreto de pé-franco, de linda cor rubi e aroma delicado, feito com as uvas das vinhas antigas das Courelas dos Aleixos. Entre o São Martinho e o Carnaval, pode sair diretamente da talha, no resto do ano serve-se engarrafado, com a maior qualidade. Quando a noite se prolonga e a animação é muita surgem os contadores de histórias, que deliciam todos os participantes. Às vezes também há cantadores, que, à desgarrada, mostram a beleza da cultura popular no seu melhor.

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